terça-feira, 4 de maio de 2010

O dia em que o Estado Novo vaiou Carmen Miranda


Por Sandro Moser
Uma multidão esperava a chegada do vapor Argentina nas docas da Praça Mauá, Rio de Janeiro em 10 de julho de 1940. Carmen Miranda voltava ao país, depois do retumbante sucesso da temporada do musical Streets of Paris, apresentado em várias cidades norte-americanas . Carmen, sempre ao lado do Bando da Lua, fazia o numero final. Consta (os dados são de Ruy Castro, biografo definitivo da cantora) que ela e o bando fizeram 412 apresentações no primeiro semestre daquele ano, numa média de 2,2 shows por dia.
A reentré de Carmem porém, se transformou num acontecimento oficial do Estado Novo, (a fase ditatorial e facistóide do governo Getulio Vargas )com cerimônia organizada pessoalmente por Lourival Fontes, há época coordenando o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda.
Para o extrovertido nacionalismo do regime tratava-se da volta de uma “patrícia” que tinha alcançado a glória em território estrangeiro, elevando o nome do país. O governo pegava carona no sucesso de Carmen, cobrando a conta pelo fato do Itamaraty ter providenciado as passagens da ida aos EUA para o Bando da Lua.
Se na triunfante temporada de estréia Carmen Miranda tinha recebido o epíteto de brazilian bombshell (algo como a “granada” brasileira), em 1940, na Europa, outras bombas e granadas explodiam. O exercito nazista que estava passando o rodo em meio continente. Em 14 de maio ,caiu Paris e logo começou o bombardeio a Londres.
No Catete, atrás de uma “neutralidade” oficial a face mais nacionalista do Estado Novo mostrava seu sorriso perverso. Num famoso discurso Getúlio celebrou o fim de uma era (a antiga Europa) saudando os novos tempos: “Passou a época dos liberalismos previdentes”.
Neste momento, a Alemanha já era o maior parceiro comercial do Brasil. A metalúrgica Krupp acabara de aceitar os termos para a construção da CSN. A elite brasileira (parte dela, ao menos) não escondia a sua simpatia ao Reich, virtual vencedor do conflito mundial.
Foi neste cenário que Carmen retornou. Seu objetivo - declarado a imprensa logo na escadaria do navio – era rever os amigos e descansar.
Ocorre que a primeira dama Alzira Vargas tinha outros planos. Dona Alzira era a coordenadora de um projeto filantrópico (a ser construído na Baixada Fluminense) chamado a Cidade das Meninas. Carmen foi gentilmente “intimada” a estrelar um jantar black-tie no cassino da Urca em beneficio do tal projeto. Mesmo a contragosto a “pequena notável” topou – o motivo era nobre e as adesões se dariam pelo extravagante preço de 100 mil réis.
Cassino da Urca lotado de fraques e decotes no dia tal 15 de julho de 1940. A famosa orquestra de Carlos Machado no acompanhamento. O speaker César Ladeira anunciava a épica trajetória de Carmen na América do Norte (que já deve ter ferido alguns ouvidos) e a apresentou. A partir daí a coisa não andou bem. Quem conta é Ruy Castro.
“... Carmen dirigiu-se a platéia em inglês:
Good Night ao invés de sua clássica saudação (e muito mais dela): _ “Oi, macacada”.
Não houve grande resposta.
Depois, Carmen e o Bando apresentam os números que tanto faziam sucesso nos EUA. Eram algumas canções satíricas, em inglês macarrônico, com um ritmo diferente dos nossos sambas e marchas (dos quais eles estavam afastados fazia mais de um ano) e que lembravam mais os ritmos caribenhos que compunham o estereótipo latino que consagrou Carmem.
Num primeiro momento houve silencio. Depois, um muxoxo irritado que se transformou numa pequena vaia.
Carmen saiu indignada. Viajar tanto para ser vaiada “em casa”. Na platéia uma única certeza – a cantora que se apresentou não era mais a mesma. Estava “americanizada”. Mas pra quê tanto veneno pra cima de Carmen?
Entre tantos motivos (Carmen estava gripada, não havia ensaiado. A escolha do repertório foi um tanto infeliz), o principal era que aquele não era o seu público. Na verdade, Carmen não sabia, mas estava cantando para o Estado-Maior da ditadura Vargas. Pessoas como o interventor do Estado do Rio, general Ernani Amaral Peixoto. Como o General Dutra, o ministro Gustavo Capanema, o famigerado Capitão Felinto Mueller e toda uma pequena multidão de áulicos e pelegos que os seguia e sustentava.
Todos vivendo o auge do flerte com o nazismo e torcendo o nariz para a ascensão americana no teatro da Segunda Guerra. Estas pessoas alugaram roupas e pagaram uma fortuna para assistir o show e colaborar com os propósitos da família do ditador. Acabaram vendo um espetáculo “inimigo”, com a Urca praticamente se transformando num palco do circuito off-Broadway. E, nesta noite, vaiaram a mais importante artista popular do país.
A questão é que Carmen voltou para a América e para o sucesso mundial, O 3º Reich acabou e logo depois a Ditadura Vargas. A CSN foi implantada com capital americano e o projeto da Cidade das Meninas não saiu do papel. Os EUA “ganharam” a guerra e o prédio do Cassino virou a sede da TV Tupi.
Deste estranho episódio ficou apenas o delicioso samba de Assis Valente que nos assegurava que Miss Miranda era brasileira na batata, sim senhor. E que na hora das comidas ela ainda era mais do camarão ensopadinho com chuchu.

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